Rollo de Resende, brevemente

A poesia de Rollo de Resende resiste ao teste do tempo e, quase um quarto de século depois do seu desaparecimento, vítima da ceifadora onda de AIDS em 1995, cresce na estima dos leitores. Uma espécie de “febre da estação”, que se alastra mesmo com a falta de novas edições. A pedido da coluna, o poeta e escritor curitibano Adriano Smaniotto, que o conheceu em seus últimos tempos, traça-lhe um perfil afetivo, revisita as regiões temáticas de seus escritos e reverencia a grandeza ainda mal conhecida, a força e a beleza existencial dos versos de Rollo de Resende.

Por Adriano Smaniotto

Poesia em Curitiba é artefato raro e de qualidade. Invisível, mas nem por isso inexistente. Não que não haja um circuito: entre os poetas que sobrevivem ao olvido há um certo capital cultural, por meio do qual autores, obras e eventos resistem à velha autofagia arraigada na Província. Difícil fazer e divulgar poesia entre os locais, tarefa que se resume ao conluio entre os pares. Muitos sequer se tornam conhecidos numa amplitude maior, devido às circunstâncias nem sempre lógicas que regem os prestígios e desafetos. Esta sina fica mais evidente quando olhamos para a poesia feita na década de 1990, cuja figura leminskiana, não sem mérito, sobranceia os demais autores. Dentre estes, urge destacar a poética de Rollo de Resende (1965–1995), que escreveu, publicou, ensinou poesia e muita gente daqui e de outras terras sequer o conheceu.

Reginaldo Possetti de Resende nasceu em Cambará, norte do Paraná, no dia 15 de agosto de 1965. Leonino com ascendente em Gêmeos, “lua cruel em Peixes” – segundo o próprio.

Seu gosto pela poesia foi despertado na adolescência, ainda na cidade natal, num grupo de 14 alunos que viviam “na cola das escolas literárias e de seus representantes”. Segundo a mini-biografia, presente no livro “Água Mineral”, não passou em dois vestibulares, “porque na hora da redação escrevia poesias”.

Em Curitiba, ganhou a alcunha carinhosa de “Rollo”, devido à semelhança, principalmente o cabelo, com o personagem da Turma da Mônica, de Maurício de Souza. O cabelo encaracolado e a barba rala por fazer eram-lhes comuns. Além de poeta, Rollo também gostava de panificar, de cantar (blues) e de pintar. Na sua liberdade e atitudes, antecipava muito da irreverência e ousadia hoje em voga. Assumia seu homossexualismo, numa época em que tal orientação sexual era considerada uma perversão, uma doença, um mal. Ligado às questões místicas, se investia delas e de coisas do cotidiano para compor.

O artista gostava de transitar na Rua XV, flertando e colhendo poesia: “as florinhas roxas do poejo./ a quem agradeço os poemas que me interpelam?/ enquanto cozinho, um convite/ para santificar-se/ à noite, desço a XV. / Abordo em bom tom e posso vir a embarcar. / Falsifico a pressa. /Estou caçando.” (Água Mineral, p. 51)

De fato, Rollo permite que aspectos urbanos influenciem seus versos, de modo que ruas famosas da capital, como a própria rua XV, aparecem em várias de suas composições, como uma trajetória pertinente ao poeta. Muito do que ele via ao longo da XV, em seus passeios com Stella (a irmã) ou com sua psicóloga – “A companheira de viagens e vigílias” – tornava-se matéria de poesia, receita que em nossa geração ficou marcada: “no meu bolso/ o menor papel/ onde se lê/ um endereço/ escrito pela bic/ da vendedora de/ cachorros-quentes./ coisas que só de noite./ correr o mundo/ e acabar sempre/ passando pela XV.” (idem, p. 20)

Sua trajetória poética foi breve, porém intensa. E a revelação, repentina, através do Concurso Helena Kolody – iniciado em 1980. Inscrito no certame, Rollo passou a ser classificado com frequência, quase sempre com mais de um conjunto de poemas publicados nas Antologias. (O concurso exigia um mínimo de três poemas de cada autor; Rollo muitas vezes era escolhido com nove deles.)

Esta presença na Antologia do Concurso era exemplo para os poetas de sua geração, como Jane Bodnar, Stella de Resende (sua irmã), entre outros; bem como para os novos que viam na sua poesia um misto de erudição e liberdade, de lirismo e sensibilidade, seriedade, descompromisso e atualidade que traduzia muito do que vivíamos.

“Naquele início de décadas fomos versáteis e ecléticos”, anunciava Rollo em um de seus poemas, ressaltando um paradigma que hoje permite definir a aura dos anos 1990.

Foi inclusive, por meio de um amigo de geração e poesia, Márcio Davie Claudino, que travei contato com seus poemas, que logo me cativaram. Nós, Patrícia Claudino, Márcio Claudino, David Nadakini, Fernando Koproski e eu – o grupo Intervenção – volta e meia éramos surpreendidos por um poema de Rollo, publicado na tipografia da Feira do Poeta, à época, 1993, sob os cuidados de Nivaldo Lopes (o ‘Palito’) e Marcos Saboia, os quais nos incentivaram na formação do grupo, na escrita da própria poesia e na descoberta da tradição paranaense. Rollo era então pra nós, ao lado de outros, como Marcos Prado, Jaques Brand, Thadeu Wojciechowski, Batista de Pilar, Alice Ruiz, Ricardo Corona, referências de poetas já maduros e proficientes, cume que ansiávamos galgar.

Lembro-me de que Márcio decorou o poema de Rollo sobre a madrugada boêmia pela XV, e cada vez que ele declamava era a nossa realidade que estava ali: “Pela madrugada o vento levantando papéis-carbono/ pela madrugada, alguém enfiando uma argola em seu mamilo/ (…) de madrugada, tomamos o expresso e vimos/ uns outros tantos, entornando vômitos./ (…) ilustres anônimos: a madrugada é nossa!/ podemos ir cantando alto.”

Isso que Rollo registrava era a nossa realidade, pois ainda não era tempo de piercings e tatuagens serem bem-vindos e comuns, tampouco as liberdades estavam garantidas e amparadas pela câmera de um smart phone; assim ele traduzia em parte o que era ser jovem numa cidade ainda apagada artística e culturalmente, diante do eixo Rio-São Paulo: beber pelo Largo da Ordem, apanhar da polícia, cruzar com punks e darks, encarnar a boemia da poesia e vice-versa.

O poeta estréia em 1988 com o livro “Bem Que Se Aviste Racho de Romã”, 21 poemas marcados pela ausência de títulos, de rimas e de estrofes metrificadas, bem ao gosto modernista. Por esses aspectos, mais o uso de minúsculas (à Cummings) e a abordagem temática breve, sua poesia possui pontos de contato com a poesia do fragmento, pautada pelo crítico Benedito Nunes. Em seguida, em 1991, publicou em página dupla no jornal “Nicolau”, alguns poemas sob o título de A Sublime Deriva. Com Jane Sprenger Bodnar e Fernando Zanella, em 1992, compôs o projeto Homeopoética, que consistia em poemas curtos publicados em cápsulas, no afã de divulgar poesia em doses homeopáticas. Paralelamente, ministrava oficinas poéticas e atuava no grupo Baú de Signos, com as parcerias já mencionadas e Hélio Leites, dos inolvidáveis botões…

Em 1995, o livro “Água Mineral” reuniu inéditos, dispersos e alguns poemas antigos, cujo lançamento contou com a presença de Rollo, já um tanto abatido pelos efeitos da AIDS, doença que o levaria à morte. Nesse sentido, o artista foi um exemplo local desta síndrome que marcou os anos 1980 e 1990 e arrastou consigo artistas nacionais e internacionais, tais como Freddy Mercury, Cazuza, Renato Russo.

SOBRE A POESIA RESENDIANA

De início, o que me fascinou na poesia de Rollo era a ausência de títulos e letras maiúsculas nos poemas, como se aquilo fosse um aparte, um pedaço, um flash do cotidiano, algo para se completar. Havia muita influência da poesia marginal em sua poesia (Cacaso, Chico Alvim, Leminski). Parecia que naqueles poemas breves sobre o cotidiano se revelava a essência da poesia: “qualquer revelação mínima/ é uma revelação do mundo”.

Era interessante ver como objetos cotidianos, muitas vezes desprezíveis, tornavam-se importantes: “preciso de um calendário/ uma caderneta/ comprar sal grosso/ linha branca/ encontrar pelo chão/ clips/ botões/ lascas de unhas, fios de cabelo/ para que a poesia/ arma zen/ aconteça.” (V Antologia do Concurso Helena Kolody de Poesia, p. 87).

Rollo também fazia muitas referências à palavra e ao livro, como “seres” mais que instrumentos que o inspiravam, uma vez que era leitor apaixonado e também ministrava oficinas de poesia: “Encontrá-los empoeirados/ habitando uma sala em promoção/ esses livros. Poder enfim lê-los/ porque até então/ era ouvir falar, ouvir falar (…)”.

Dessa forma, para nós, sua poesia era também um incentivo ao conhecimento, à leitura. E talvez seja um seu aspecto notável, mostrar como um poeta se faz, se constrói literariamente. Suas brincadeiras com a linguagem eram relevantes, pois atentava para a sutileza e beleza que cada vocábulo carrega, descobrindo-as e ressignificando-as: “(…) maizena vem de maíz, não lhe parece?/ Thais Thá é algo assim como Gilberto Gil, só que mais ao sul do alfabeto”.

Outra: “ele entorta a boca para melhor morder sua gengiva/ (…) / ele gosta de papéis/ sinais vindos/ do céu e palavras.// ele aviva.” Ou ainda: “(…) então rendo graças a esses objetos/ que agora me deixam:/ a colher de pau (…)/ a panela de barro (…)/ a mochila que devolvo ao tião, esgarçada/ tudo isto/ transformava-se/ no livro/ que não é// me livro.”

O lirismo sentimental, sensível e terno, assinala igualmente sua poesia. Rollo apreende com ternura certas situações e as registra de forma leve e tocante. É assim no trajeto citadino: “todos os dias/ refaço a mesma rua,/ nostálgico./ quero encontrar/ de quem arrancaram-me./ vivo imantado”. (Água Mineral, p. 59)

Ou a surpresa dos encontros: “pode ter saído de um romance de Pasolini (um dos seus ragazzi de vita) ou de um poema de Konstantinos Kaváfis// mas não,/ veio a mim aqui mesmo do lado de fora da vida/ e mais,/ na verdade iria ao encontro de qualquer um.” (Idem, p. 60)

Ou mesmo diante da morte que o aguardava: “anjo em guarda/ nenhuma haste tua/ que me absolva// deixa supor/ que nos salvaremos/depois// na hora/do poço/ do elevador.” (Idem, p. 68)

Aspecto relevante é a presença lírica no tratamento da temática homossexual. O poema Nunca Irei Escrever Alguns Poemas, feito para o companheiro vitimado pela Aids, é um nítido exemplo: entrava luz sinistra fim de tarde/ […] tudo viu este que entrou/ o quarto branco para dois/ tocou a mão amarrada/ e a mão se amarrou/ (…) coberto com lençol pastel/ o doce relevo de seu sexo eu não pude deixar de desejá-lo/ mesmo as amarras o caninho/ os olhos indo e vindo/ a luz sinistra/ você estava desejável;/ eu quis que você vivesse./ esta era a promessa de nossa amizade:/ um dia eu iria tocá-lo. // amor dos homens.

O amor que sublima a morte, o sentimento que se prolonga para além da vida, marca esse “amor dos homens”, verso plurissignificante e sublime.

Por força de tempo e espaço, despeço-me do leitor e do bardo, saudoso daquela triste tarde no Hospital do Trabalhador em que eu e Márcio Claudino fomos visitá-lo. Ao ver-nos adentrar seu quarto, Rollo exclamou “– Baco!”, provavelmente pelo aspecto atlético de Márcio, alcunha com que o trato até hoje em memória afetuosa daquele evento.

“NAS ÚLTIMAS RESERVAS”

Também naquele hora, ao vê-lo com tantas manchas roxas pelo corpo, não pude deixar de lembrar de seus versos: “estou nas últimas reservas das sementes/ (…) eu adquiri uma alma violácea neste cansaço” 

Ali um de nossos mentores culturais nos dizia – apenas corporeamente – adeus, mas nos ensinava algo não muito em voga na poesia da época e na atual: escrever a vida que se leva e vive, ainda que fragmentária, mínima e passageira, “ir no seu barco para o fundo ou para a beleza”.

Rollo morreria três dias depois.

Adriano da Rosa Smaniotto (Curitiba, 1975) é professor da rede pública estadual. Autor de vários livros de poesia, entre os quais “Vísceras à vista”. Doutor em Letras pela UFPR.

Notas: 1. O perfil de Rollo de Resende por Adriano Smaniotto foi publicado originalmente em 2020 na coluna FRASEADO & FLAUTEADO do jornal Cult Curitibano. 2. A editora Telaranha lançou em março de 2023 uma antologia dos poemas de Rollo de Resende, intitulada “Espáduas”, a ser resenhada brevemente nesta Querela.

 

O deserto de sinais

Rollo de Resende

Estamos voltando para Grifolux./ Miriápolis não dava mais./ Juntamos nossas coisas/ e atravessaremos o deserto/ de sinais./ É verdade, aprendemos muitas canções/ em Miriápolis./ Mas quase esquecemos como lateja/ o vivificante sol de Grifolux./ Deixamos convivendo no cercadinho:/ brutos e mansos de coração,/ vales e montanhas,/ relicários e estantes de tábuas/ e tijolos,/ claridade e a escuridão./ Como quando/ dentro da noite do espírito/ pingasse uma gota de bem-aventurança./ Viver esta sede/ era o que nos possibilitava/ ao meio-dia/ ouvirmos noturnos de Chopin,/ com alguns amigos escrever/ o guia do amor descomplicado,/ permitir à vida que nos comovesse/ enquanto assava-se pão/ para toda a semana./ Agora chovesse sobre Miriápolis,/ tamborilando em vasos e latas no quintal/ enquanto nos distanciávamos/ indo para Grifolux/ onde sobretudo sabíamos florescer/ o jardim de si.

In “Os Poetas. Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná”. V Concurso Helena Kolody de Poesia. Curitiba: Governo do Paraná, 1994.

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