Livre das máscaras da pandemia, a poesia de Luciana Cañete

A epidemia de Covid que rapidamente se alastrou a partir de janeiro (ou seria fevereiro) de 2020 traduziu-se também como solidão, ensimesmamento e novas percepções. Aos poucos, as anotações poéticas desses dias decididamente estranhos (para emprestar esse adjetivo da apresentação que se segue, de Ricardo Pozzo) emergem para a leitura mais geral. Abrimos a primeira edição desta QUERELA com dez dos “Poemas da Quarentena” escritos nas condições de confinamento (outra palavra de que toda gente se valeu exaustivamente) pela poeta, tradutora e mestre em letras Luciana Cañete.

Poesia de um tempo estranho

por Ricardo Pozzo

A poeta e tradutora Luciana Cañete, nascida em Porto Alegre nos anos 80 e radicada em Curitiba, é professora de espanhol pela Academia de Línguas do Paraná. Publicou o livro de poemas “Meu coração bate e às vezes me espanca”, pela Multifoco, do Rio de Janeiro, e “O livro da vida inteira” (quarenta semanas) pela Lei Aldir Blanc, disponível em formato digital.

Como projeto de mestrado pela UFPR, desenvolveu pesquisa sobre tradução da poeta uruguaia, expoente sul-americana na luta pelos direitos da mulher, Delmira Agustini, onde tenta investigar aquilo que só é revelado ao se pensar na intenção, por vezes subjetiva, da ordem em que são distribuídos os poemas quando o poeta resolve publicar uma obra. O mesmo mistério a ser desvendado reside na plaquete “Poemas da Quarentena”, que Luciana compôs na época em que esteve em isolamento social para se resguardar, a si e aos outros, durante o período mais intenso da pandemia de Covid-19.

Na plaquete, ainda inédita, Luciana demonstra que sua voz lírica  veio se refinando, ao mesmo tempo em que seu decifrar-se a si torna-se mais concreto.

Poemas da Quarentena nos conduz a essa odisséia particular, mergulhada num ambiente cada vez mais hiper-coletivo (à Baudrillard). A partir de versos de rara beleza, os poemas desafiam esses tempos tão enigmáticos, quando enfim nos deparamos diante dum abismo de significações.

Note-se como ela vai costurando com delicadeza e aos poucos essa trama. Do conjunto, se desenreda (ou se deduz) uma poética, e surgem, delimitadas com clareza, em seus mínimos contornos, as fronteiras de um território interior.

Foto: Giuliano Andreso

 

Poemas da Quarentena

 Por Luciana Cañete

Dia 1

Ainda não entendi
se é por mim ou por ti
que melhor será
ficar aqui.
No meu coração cristão
por mim ou pelo outro
nunca é uma questão.
Mas estando tudo tão louco,
o que é pro outro
virou mera
questão de opinião.

Dia 2

Politizaram o vírus.
Foi uma beleza.
Nasceu na esquerda.
Espalhou-se à direita.
Cá no meu confinamento
sempre tive que vírus
é anarquista por natureza.

Dia 3

Quarentena.
Quaresma.
Quarentona.
Me acostumando
a todas
e muito bem obrigada.
Alívio de não explicar
por que já não vou
a nenhum lugar.

Dia 4

Soltar os trocadilhos
que não contaminam.
Confina e confia.
Ou (des).
Não convide ou
COVID.
Ou (des).

Dia 5

Palavra costura de caos:
no verso
e no reverso.
Mundo vasto i(ai)mundo.
Diminuto em minutos:
só paredes
e o que são capazes
de resguardar.
Há um fio –
de Ariadne?
Cordão umbilical? –
a nos guiar para,
de onde,
nunca saímos.

Dia 6

Ainda são vistos:
braços histéricos
buscando a corda
do cabo de guerra.
Não há corda –
roeu-se.
Nem cabo,
nem guerra
quando todos
a afogar-se juntos.
Ainda vejo os que
golpeiam o espelho
(certos do que
é o reflexo)
e aplaudem o nocaute
de si mesmos.

Dia 54 (muitos dias depois)

Minha alma
move-se.
Certifico-me
pelos órgãos externos:
a filha e a cachorra.
São minhas antenas,
espero que sejam eternas.
Por suas medidas,
cavo os meus buracos,
onde meter-nos
as três,
caso a guerra venha.

Dia 55 – Entre Augusto e Visconde

Uma mulher
(pobre,
suja,
inconsciente)
no meio da urbe,
dentro da pandemia.
O corpo f(a)etal
na curva
da
esquina.
Dobrada sobre si.
Uma mulher,
assim,
adquire mimetismo:
é uma pedra.
Tão na beira que,
se rola,
cai na pista
e baila.
Minha filha tem 6 anos,
olhos abertos na alma.
Anuncia antes de todos.
Pequena sirene de humanidade:
 – É uma mulher no chão, mamãe!
É uma mulher no chão, mamãe!
Uma mulher, é uma mulher.

Dia 56 – Desisti da poesia

Este poema é um adeus.
Descobri que nada mais vale um poema.
Escrever para que a poesia fira,
de qualquer possibilidade,
e da laceração escorra
sentido algum,
mais agudo,
menos superfície.
Como ponta de lança,
assim as palavras.
Apelo da tinta
por coisa outra,
menos rasa,
menos razão.
Sendero luminoso,
fio de Ariadne
do externo
pro introspecto.
Mas desisti, deixo aqui.
Nem verso nem rima
que prorrogue ou apresse
o que anuncia.
Aqui nesta linha,
alguém parou pra deixar de lado.
Ninguém parou pra ler o recado.
Foi silêncio pra tudo quanto é lado.

Muitos dias

Cansei de mim,
e justo no meio
deste cansaço
me parte ao meio
este raio de certeza:
livrar-me de mim
é coisa que não posso.
Então de mim me distraio.

Compartilhe