José Adil Blanco de Lima sobre: Um exercício de memória sobre Dona Dora e seu Adil

Ancestralidade negra, militância política e resistência à ditadura militar do Sul do Brasil

Paulo Rolando nos apresenta um livro de memórias pouco convencional. Não se trata de uma memória individual, onde o narrador discorre a respeito de sua própria trajetória. Aqui temos uma espécie de memória coletiva, associada ao grupo familiar.

Nessas memórias, desvelamos a história de uma família negra e humilde do Sul do Brasil, oriunda principalmente do interior de Santa Catarina, que, apesar de todas as dificuldades impostas pelo racismo e pelo autoritarismo, conseguiu ascender socialmente no decorrer das gerações.

Inicialmente o autor havia planejado o livro como uma biografia de seu pai, José Adil de Lima, que foi uma figura ao mesmo tempo comum e extraordinária. Comum porque foi um trabalhador braçal negro, de origem humilde, que trabalhou a vida toda como operário, na área da construção civil. E extraordinário porque se aproximou do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se engajou numa série de militâncias e lutas políticas e sociais entre as décadas de 1940 e 1960.

José Adil aproximou-se do PCB em 1945, quando o partido retornou à legalidade com o fim da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e início da redemocratização do Brasil. Nesses anos iniciais da Guerra Fria, o repúdio aos norte- americanos que lançaram bombas atômicas contra populações civis no Japão (um tipo de covardia que até hoje não foi igualado por nenhum ditador ou terrorista), foi determinante para a sua politização e a sua militância política.

Graças à proximidade com o PCB, o jovem trabalhador negro José Adil de Lima teve a oportunidade de desenvolver o seu lado intelectual, leu vários livros, jornais e revistas, participou de discussões teóricas sobre os rumos políticas e econômicos do Brasil e do mundo. Junto ao partido ele teve inclusive a oportunidade de fazer uma viagem de visita à URSS em 1963.

No entanto, como relata o próprio autor, na medida em que o livro ia sendo escrito, ele acabou transcendendo o objetivo inicial. Acabou se transformando em uma verdadeira busca pela ancestralidade de uma família de negros no Sul do Brasil.

Paulo Rolando nos fala de seus ancestrais a partir de sua própria memória e, principalmente, pela tradição oral, que lhe foi transmitida por avós, tios e outros conhecidos, que lhe permite refletir sobre o passado mais recente de sua família.

Nesse sentido, é importante destacar a centralidade que Paulo Rolando dá às mulheres de sua família, mulheres negras fortes e batalhadoras, que enfrentaram inúmeras dificuldades durante suas vidas.

As trajetórias dessas mulheres, principalmente das Vó Estela e Vó Justa, ambas nascidas na década de 1890, são exemplos significativos das condições difíceis em que viviam as mulheres negras e humildes do Sul do País, no contexto do pós-Abolição. São mulheres que tiveram muito pouca ou nenhuma escolaridade, que trabalharam a vida inteira como domésticas ou lavadeiras na casa de famílias brancas de classe média, e que tiveram que criar seus filhos sozinhas, por terem se tornado viúvas muito cedo ou por terem sido abandonadas pelos seus companheiros. 

Dentre as diversas histórias que são contadas por Paulo Rolando, a mais golpe de 1964 e a instauração da ditadura militar, prisão essa que ocorreu em casa, mais marcantes do livro; a descrição do autor merece ser transcrita:

“Enquanto o Comissário entrava, nós demos a volta e entramos pela porta dos fundos. Mamãe já choramingando com o Junior no colo, a Lúcia ao seu lado, assustada e perplexa como nós todos, ouvimos o Comissário relatar que uma vizinha havia visto luz acesa de madrugada e deduziu que o Lima havia voltado para casa e comunicou à Polícia. Como havia uma ordem de prisão contra os comunistas, tinha vindo cumpri-la (…). Já do lado de fora da casa, notei que uma pequena multidão se formara na rua e todos puderam ver o Lima caminhando calmamente, com a cabeça erguida, sério, mas sem expressar medo ou constrangimento, entrar na viatura junto com os soldados armados (…). Os dias seguintes à prisão do Papai foram muito desagradáveis. (…) As pessoas mais ignorantes e menos civilizadas nos hostilizaram, sempre no limite das respectivas covardia e crueldade, ora cochichando delírios sobre as barbaridades perpetradas pelos comunistas se não fossem presos, ora desejando que a fome e outras desgraças nos consumissem rapidamente.” (LIMA, 2023, p. 84-85).

Essa parte da narrativa, que discorre sobre a militância política de Seu Adil e a perseguição durante a ditadura militar, talvez seja a parte mais importante e bem fundamentada do livro. Paulo Rolando complementou suas memórias individuais com um largo conhecimento de história do Brasil, especialmente durante esse período tão autoritário e sombrio.

Nesse sentido, deve-se destacar a interlocução do autor com o historiador José Bento Rosa da Silva, que assina o prefácio do livro. José Bento tem uma vasta produção acadêmica a respeito do protagonismo negro e das lutas enfrentadas por “homens e mulheres de ébano” em Santa Catarina. Por conta disso, a experiência e a militância política de Seu Adil não lhe passaram despercebidas. José Bento compartilhou com Paulo Rolando uma série de documentos e informações importantes a respeito do processo e da prisão de Seu Adil durante o regime militar.

Em suma, “Um exercício de memória”, de Paulo Rolando de Lima, é um livro bastante pessoal, escrito com afeto e sensibilidade. Trata-se de uma leitura fundamental para todos aqueles que se interessam pela presença e cultura negra no Sul do País e pelas formas de resistência aos autoritarismos da ditadura militar no Brasil.

José Adil Blanco de Lima é professor de História junto à Universidade Estadual do Norte do Paraná e filho do autor.

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