Crônica da vigília

Crônica da Vigília

Por Walmir Assunção Marques
Ilustração Lua Castilho

O tempo insiste em sua chula cronologia… na Crônica da vigília de Walmir Assunção Marques, ilustração Lua Castilho.

Seu vestido estampado se atravessa como o oposto de um fantasma, natureza bruta, muito bem composta, a lograr a memória das enfermarias onde tratei de meu espancamento.

 

Sou eu que tento chegar na visão do seu vestido. Eu que assombro minha imaginação. A noite é tão fria meu amor e você é a impressão de um dia, não a dez horas, mas a poucos passos que caminham em frente aos meus.

 

No telhado da frente seu vestido tremula num para-raios. Está na única janela da casa – as outras cinco são ficção. Então me assusto, porque assusta toda verdade contínua. Meu medo perde a pompa, está cru. Caminho a distância precisa para meu enfrentamento. De súbito não negocio com a tristeza. Sinto que não é mais tão morna a melancolia. Minhas almofadas se encharcam na sombra. Não é mais confortável – como em qualquer criatura saudável, é a sombra que deve se adequar. Meu peito funde com sua própria medida. Fujo do raso sem nunca chegar.

 

Gosto tanto que estou a três palmos do chão. Desço da rua para a calçada com uma pedra em cada bolso. O ar me falta ou me massacra. E eu o puxo esbaforido, como se estivesse num poço e na ventania.

 

A vigília se quebra em cansaço e insônia bastarda, mas se recusa a dormir. Algo desce para cair na madrugada e dizimar com o relógio. Entre linhas, nos rastros do esplendor, avoa uma gaiola onde sempre coloco máscaras simplórias. Então me visto com roupas casuais e este palavreado corriqueiro.

 

É nela que tentarei pensar neste dia – porque você precisa ser ela, senão não conseguiria pensar. Sei que sua imagem é uma fonte. Um clarão em cada canto, a quem nego convivências. É preciso idealiza-la aquém e com menos luminosidade. Para que a vida não seja trêmula travessia, nem a gincana mortal de uma criança.

 

Eu lhe oficializo outra. Impossível que é, tanto esquece-la, como lidar com sua amplitude – pois sei que meu tremor está de prontidão e não titubearia. Assim me poupo de desafiar um prêmio maior do que quem o desfrutaria.

 

E se o tempo insistir na sua chula cronologia – sim, se vier a noite – sei que de roldão virão os bares noturnos. Hoje devo jantar cedo em Curitiba, onde há um piano – decerto exagero. E ser a obtusa multidão num bar da São Francisco. Depois das celebrações da Cândido de Abreu, sentar-me no meio fio onde ninguém senta, só para acarinhar a serragem; sobra dos tapetes deste Corpus Christi. Pôr o pé na parede junto ao Nina. Minto descaradamente, é bem provável. Porque todo arroubo é imprevisível.

 

Devo deduzir que estarei vivo. Mas quando repousar no travesseiro, que o faça com a cabeça e não com as folhas – tamanho o temor de que algo não persista sob o redemoinho.

Pois me ficou a tempestade.

 

Antes, irá me soerguer o Rufino. E numa tampinha descartável, Edson Aranha me trará água benzida. Vê que o devaneio também é um galho da verdade? Um Deus pagão me emprestou com usura suas sandálias trocadas. E devo lhe pagar com uma lisergia espontânea e sem fungos. Só sei que gosto muito, e a verdade também está na loucura.

 

Tocar no amor ao falar de amor é fortuito, um caso de tentativa e erro – uma frase de sorte. Recorte de arte que ameaça borbulhar na ânsia de ser esboço de um infinito.

 

Gosto tanto que não fiz esta crônica. Ela que se policia. Minha poesia que se apara e condensa – Kubla Khan dos miseráveis. Os galhos da correnteza me salvam das suas margens e me trazem para estas linhas.

 

Num recorte do céu, entre retalhos estampados, seu vestido está por inteiro junto à lua.

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